No dia 30/03/2018, em Belo Horizonte, o V Congresso (unificado) do PRC apreciará o Programa do Partido da Refundação Comunista (Brasil) e o Estatuto do Partido da Refundação Comunista (Brasil), base sobre a qual o Partido Comunista (PC) e a Refundação Comunista (RC) ingressaram em um período superior de existência.
“Eles pensaram que estava tudo acabado em Mahagonny.
Não, responderam os homens de Mahagonny!”
Mahagonny Songspiel, de Bertolt Brecht e Kurt Weill
I – O Programa Máximo
No Brasil, a vertente proletária da esquerda surgiu no início do século XX, articulada às primeiras expressões socialistas e às lutas do sindicalismo nascente. Desde então, o movimento operário e popular colheu vitórias e derrotas. No conjunto, são experiências integrantes de uma tradição fundamental para avaliar-se a práxis revolucionária, com vistas ao combate emancipatório em melhores condições, com maior consciência de si e de modo mais produtivo.
A linha estratégica sobre os assuntos que pedem respostas “dentro da ordem” – pontos relativos à questão nacional, às liberdades democráticas, à reforma agrária, às conquistas sociais, às melhorias salariais, à luta antirracista, aos direitos femininos, aos problemas da juventude e ao desequilíbrio ambiental, entre outros – jamais considera as atividades como coisas em si, que se esgotam em suas próprias existências setoriais ou parciais. Exige mudanças anti-imperialistas e democrático-radicais conduzidas até o fim, visando a se articularem as disputas políticas imediatas com o combate ao capital. Trata-se de um grande desafio.
Na formação econômico-social brasileira, predomina a produção mercantil com base nas relações capitalistas. A maior e principal parcela dos meios de produção é propriedade de alguns poucos magnatas monopolista-financeiros, enquanto a grande maioria da população é obrigada a vender sua força de trabalho, para mantê-la e reproduzi-la. Como o lucro é sempre uma alíquota do labor não pago, da mais-valia, ampliou-se a centralidade do trabalho, reforçada pela expansão da produtividade, da industrialização dos serviços, do assalariamento, do caráter social da produção e, paradoxalmente, da marginalização compulsória de massas conforme a lógica vigente. O progresso técnico vem desaguando no crescimento da taxa de exploração, da desigualdade e da pobreza relativa.
Nessa ordem social exploradora e opressora, o indivíduo é aprisionado em uma teia de alienação. Para a burguesia, o que transforma as matérias-primas é o capital, não os seres humanos. Os carecimentos só interessam na medida em que geram consumidores. Os produtores diretos são tratados como seres embrutecidos e impotentes diante de uma realidade que ajudam a construir e manter. O capital, trabalho morto, submete o seu criador, trabalho vivo. Assim, o cidadão, para ser pessoa – impregnar com sua vontade a mercadoria, isto é, comprar e vender – precisa coisificar sua capacidade produtiva e os valores que gera.
Eis a liberdade formal e precária que as pessoas podem alcançar e usufruir na sociedade capitalista. Quando abandonadas ao senso comum da ideologia dominante, enxergam tragicamente no Estado – que a crítica marxista desvela como ditadura de classe imanente – e no “direito da desigualdade” suas verdades morais, bem como na cidadania contemporânea o horizonte de sua ação social. Frequentemente, as políticas governamentais sob o jugo burguês são impotentes ou até aguçam a barbárie da criminalidade, da ignorância política, da miséria cultural e da fragmentação grupal.
Ademais, o capitalismo, em sua anarquia intrínseca e inevitável, sofre longos períodos depressivos e sucessivos mergulhos cíclico-conjunturais, que destroem, periodicamente, as forças produtivas, provocam desemprego e lançam multidões na miséria, como condição para se retomarem os pulsos econômicos expansivos. O mundo vive, desde a primeira metade dos 1970, uma estagnação sem horizonte de saída, com baixos índices de crescimento. Só nos últimos 15 anos, o Brasil foi assolado por três crises conjunturais, a última a partir de 2014.
Nesse quadro, a continuidade da luta proletária, embora repleta de obstáculos e desafios, é uma possibilidade que emerge nas próprias entranhas da sociedade vigente, postas por suas necessidades e contradições. O fim da exploração, da opressão, das desigualdades, dos preconceitos e da alienação exige a construção de um novo sistema de necessidades, com inovadoras relações sociais. Implica a superação da ordem burguesa para a construção da primeira comunidade emancipada, na qual possam florescer as individualidades. Trata-se de uma profunda humanização do ser humano. A não ser como processo de transição, esse fim jamais se configurou em nenhuma parte do mundo.
Tal propósito histórico é um projeto social cujo centro de gravidade se situa na necessária supressão da propriedade privada dos meios de produção, substituindo-a pela apropriação social. Dessa ideia, a posse em comum, deriva o nome comunismo. Semelhante princípio baseia-se na compreensão de que, no capitalismo, a propriedade particular dos meios de produção – a detenção desse monopólio por uma classe, a burguesia, e a sua privação à imensa maioria da sociedade – é o fundamento da atual divisão social. Consequentemente, a sua supressão é o nó górdio que precisa ser cortado para ultrapassar-se a sociedade alienada.
Nesse quadro, o PRC, em perspectiva histórica e mundial, tem os seguintes objetivos gerais, que constituem o seu Programa Máximo:
– Apropriação social dos meios de produção e serviços;
– Distribuição diretamente social dos bens, com a superação do mercado como mediação impositiva entre produção e consumo;
– Fim da separação dos seres humanos em classes sociais;
– Extinção progressiva da divisão de trabalho entre dirigentes e executantes, assim como entre funções intelectuais e manuais;
– Eliminação do fosso e da distinção social entre cidade e campo;
– Superação das fronteiras nacionais;
– Fenecimento da necessidade objetiva do Estado, por meio da ultrapassagem de suas bases econômico-sociais de existência.
II – A sociedade socialista
A concretização de projeto tão instigante – o mais grandioso da história, como também o mais distante e difícil, que exige transformações amplas e radicais – será fruto das atividades efetivadas por muitas gerações. As mudanças durante a passagem da sociedade atual à futura – período conceituado como formação econômico-social socialista – serão tantas e tão profundas que mal podem ser imaginadas. Inútil seria detalhá-las previamente, sob a pena de degenerar-se o esforço revolucionário em engenharia academicista, exercício utópico ou esperança messiânica. Ademais, a sua realização jamais assumirá uma forma linear e tranquila, sem erros, recuos e derrotas.
A questão central da transição socialista é a transformação das relações humanas com base no processo de apropriação social dos meios de produção, dentro de um mundo em que domina a lógica da reprodução sociometabólica do capital sob a hegemonia imperialista. As relações burguesas, que se caracterizam pela coisificação mercantil, terão que ser substituídas por outras, fundadas na solidariedade, no respeito pessoal e na cooperação voluntária. Isso demanda condições objetivas e subjetivas que favoreçam o desenvolvimento de novas formas de interação social, bem como a transformação dos procedimentos e comportamentos em um quadro complicado e hostil. Obra de várias gerações, somente poderá completar-se em escala mundial.
Uma vez revertido o velho poder político nacional, será decisivo enfrentar os fundamentos sociais da autoridade econômica, ideológica e cultural do capital, bem como desagregar os vários aspectos de sua reprodução social suprafronteiras e os vetores espontâneos de sua regeneração. Semelhante tarefa não depende, exclusivamente, da vontade. Enquanto permanecer inconcluso, o poder político do mundo do trabalho, recém-instaurado e ainda débil, especialmente nas esferas da economia e da hegemonia, estará instável e ameaçado, por meio do transformismo social, de processos golpistas variados ou da simples violência.
Alguns instrumentos antigos, como o “direito da desigualdade”, permanecerão em vigor por muito tempo. A transição implica a permanência de múltiplas contradições após o sucesso da revolução política. Haverá uma convivência conflituosa, mais ou menos aguda, ainda que as instituições estejam sob o mesmo comando. A própria extinção do Estado e das fronteiras nacionais, apesar de enunciado tão elementar, direto e genérico, comporta alta complexidade teórica e prática. Sua consecução passará pela superação objetiva de antigas e arraigadas necessidades: só poderá ser uma espécie de fenecimento.
No plano da consciência política, a sociedade emancipada apenas será possível quando as grandes massas populares, especialmente as maiorias componentes do mundo do trabalho assalariado, tiverem adquirido suficiente experiência de gerir a si próprias e, para tanto, constituído, em lugar das instituições hoje materializadas no Estado, a organização alternativa necessária, ou seja, os órgãos que tornarão possível um autogoverno tendente à desalienação das relações humanas, das esferas locais às nacionais e internacionalmente.
O poder proletário, como sempre acontece em qualquer Estado, exercerá coerção sobre atividades criminosas e ilícitas. A legalidade instituída conterá novas normas para a convivência social, a defesa nacional com participação ampla do povo armado, a disputa política e o respeito aos direitos das maiorias no processo de transição. O regime político de democracia socialista preservará a liberdade real de expressão para além dos enunciados formais, a nacionalização de conglomerados monopolista-financeiros, a extinção dos latifúndios privados, a democratização da cultura, a universalização do conhecimento e assim por diante.
A realização do projeto emancipatório exige, pois, uma passagem que se inicia em terrenos nacionais particulares, mas que só poderá progredir em âmbito planetário e concluir-se em longo prazo. Durante esse período, a restauração do capitalismo será sempre uma possibilidade. Para que se desenvolvam as novas relações sociais e permaneça efetiva a resistência à reação, é preciso quebrar e controlar, externa e internamente, o poder do capital em autorregenerar-se, assim como em subordinar e destruir seus antagonistas.
Apenas quando o antigo poder político for dobrado e os trabalhadores assalariados modernos se tornarem a classe estrutural e hegemonicamente dominante – isto é, exercendo o consenso e a coerção em acepção abrangente e permanente – é que a cooperação na esfera produtiva terá condições de começar a tornar-se voluntária e a fundamentar um novo processo social. A revolução contemporânea, que implica enfrentar as forças institucionalizadas dos Estados burgueses e desagregar velhas legalidades constituídas, nacional e internacionalmente, é sempre um ato de força no sentido amplo e profundo da expressão. Socialismo é o conceito referente à sociedade em vigor durante a passagem.
O processo de apropriação social dos meios de produção implica o seu controle pelo mundo do trabalho. Ocorre no interior de uma formação econômico-social complexa, em que sobrevivem a propriedade privada e modos de produção distintos, embora submetidos à planificação político-administrativa geral. Mantém-se o Estado, mas como mediação histórica, isto é, como conceito contendo nova particularidade de classe, caracterizada pela presença da maioria organizada em poder político. Crucial é o elemento subjetivo, com destaque à ideologia proletária, às políticas transformadoras e aos valores humano-universais.
A passagem exige, no interior de um Estado com nova primazia de classe – vale dizer, uma essência historicamente ainda determinada pelas condições sociais antigas e remanescentes, que só poderá ter o conteúdo de ditadura do proletariado em substituição ao conteúdo de ditadura da burguesia –, um regime político-constitucional de democracia socialista, entendido como síntese da liberdade formal com a liberdade real, que articule relações institucionais e legais inovadoras entre o Estado e a sociedade civil, capazes de garantir os direitos individuais, civis e coletivos, inclusive à participação política e à autonomia das entidades representativas de massas. O socialismo como formação econômico-social é a objetivação sintética e progressiva da hegemonia política, ideológica, moral e cultural dos proletários e seus aliados, conscientes do propósito emancipatório, imbuídos de valores revolucionários e dispostos a travarem os embates de classe até o fim.
III – O proletariado na transformação social
A estratégia socialista, desde o Manifesto do Partido Comunista, baseia-se no princípio de que o proletariado é a “possibilidade positiva de emancipação”: o ser social empírico capaz de adquirir consciência de classe para si, assumir a condição de sujeito e converter-se na “dissolução da sociedade como classe particular”. No polo oposto, as modificações na estrutura econômico-social reservaram à oligarquia monopolista-financeira a condição de fração dominante, fundindo, sob a sua primazia, as antigas formas autônomas do capital. Já os grandes proprietários fundiários se tornaram um setor da burguesia e a produção agropecuária de escala se converteu em um ramo da indústria. Até o crime organizado se afirmou como negócio que movimenta enormes fortunas e que, embora ilegal, se associa intimamente à reprodução do capital total.
A imensa concentração de empresas privadas e o crescimento do aparato público, havidos na segunda metade do século passado, levaram à ampliação, na mesma medida, do contingente de empregados incapazes de gerar, diretamente, capital. São proletários improdutivos, ocupados em trabalhos que auxiliam os patrões ou dirigentes do Estado a consumirem ou oferecerem serviços básicos, administrarem propriedades, gerirem processos econômicos e venderem mercadorias. Houve também a expansão das indústrias dedicadas a bens-serviços, cuja especificidade é sintetizar a produção e o consumo em atos temporalmente coincidentes.
Em contrapartida, tendo uma boa parte das fazendas se convertido em indústrias, em termos proporcionais aumentou o operariado rural e diminuiu a presença do campesinato. Ademais, a antiga pequena burguesia passou por grandes transformações, seja reciclando-se com a utilização de novos instrumentos de trabalho, seja convertendo-se ao assalariamento e, portanto, proletarizando-se. Destarte, o grande aumento de trabalhadores, nos bancos, no comércio, nos setores administrativos das fábricas, na máquina estatal e em uma gama de funções novas, tornou mais complexa a estrutura do proletariado, que inclui, agora, empregados com os mais diversos níveis de remuneração e de educação, bem como aqueles alocados em setores mais recentes e com práticas produtivas emergentes.
Essa realidade reforça o conceito de que o proletariado é a classe cujos membros só possuem a própria força-de-trabalho e são obrigados a venderem-na em troca de salário para prover e reproduzir suas condições de existência, gerando assim mais-valia ou permitindo que suas funções úteis possibilitem ao capital assenhorar-se de uma parcela do sobretrabalho social. Se o labor é produtivo ou não, é manual ou intelectual, gera bens materiais ou espirituais, produz precipuamente mercadorias ou meros valores-de-uso, são questões que dizem respeito, não à singularidade do conceito, mas sim à função concreta e ao lugar do trabalho na reprodução do capital. Repercutem, pois, apenas sobre os contornos das camadas interiores ao mundo assalariado.
A readequação do proletariado, internamente, com mudanças nas características e nas relações mútuas de suas camadas, bem como em seus aspectos externos, mantém a sua essência. Destaca-se o seu vínculo adensado com as técnicas emergentes nas últimas décadas, gerando a crescente qualificação, a integrativa socialização das diferentes atividades e as migrações internas, especialmente rumo aos vulgarmente chamados serviços, entre os quais estão novos tipos de indústrias, e à informalidade, paralelamente à multiplicação do trabalho inutilizado no desemprego.
Considerando ainda a concentração de capital pelos monopólios, com a decorrente alta na produtividade, aprofundou-se a centralidade do trabalho na reprodução da vida social. Mais importante do que avaliar o peso numérico do proletariado é compreender o seu significado como classe revolucionária por excelência, a base sobre a qual deve apoiar-se o movimento comunista. O fundamento desse enunciado jamais foi quantitativo. Marx se baseou na seguinte observação: existe uma classe que é oprimida pelo capitalismo, que o combate, que será imediatamente libertada pelo socialismo e cuja luta é a base para o avanço do movimento, uma vez que sua libertação tem que ser obra de si própria.
Tais constatações não autorizam a ideia de que todo operário seja revolucionário, como entende certa vulgarização do marxismo. O caráter e a ideologia de uma pessoa são determinados por múltiplos fatores, sendo sua existência socioempírica apenas um entre muitos. Os conceitos de classe têm validade em termos históricos porque, considerada a sociedade como conjunto, os demais constrangimentos e causalidades, por não terem primazia, tendem a perder-se ou compensar-se. Então, e somente então, evidencia-se a determinação fundamental. Mesmo assim, o trânsito da ideologia sensível à consciência de classe é fruto de um processo complexo, irredutível aos fundamentos essenciais da formação econômico-social e ao cidadão entregue ao senso comum da sociedade do capital.
Eis por que, quando se processa a política prática, torna-se obrigatório considerar os sujeitos singulares, sob a pena de professar-se um doutrinarismo estéril. Seria um grave equívoco ignorar as demais determinações. Têm, pois, grande importância, a história, a cultura, os valores, as circunstâncias conjunturais e os papéis específicos dos indivíduos, agrupamentos, entidades, partidos, movimentos e demais setores componentes das forças sociais e praticantes de atividades concretas, que dependendo das circunstâncias e das vontades variam, chocam-se, agregam-se, identificam-se e se distinguem em relações incessantes, contraditórias e complexas. A política revolucionária é a ciência e a arte de abordá-los, com vistas a construir a emancipação humana.
Nessa acepção, a estratégia, que já emerge das experiências econômico-sociais, deve considerar as condições concretas em que se desenvolverão as disputas políticas. Para tanto, um dos aspectos chaves é a correlação de forças entre as classes, especialmente a capacidade resistente e contra-hegemônica do mundo do trabalho assalariado. A luta encetada pelo proletariado e seus aliados visa a passar, desde que se configure uma situação revolucionária, à “guerra de movimento” para a conquista do poder, que abrange o combate ao Estado burguês e aos privilégios de classe, bem como a construção de instrumentos populares de ação.
IV – Parâmetros gerais da revolução política
A estratégia é algo mundano, uma teoria que norteia a intervenção de um sujeito finito. Para sua formulação e execução, tem importância chave a questão nacional, como também o caráter singular da finalidade política como conquista e reestruturação de um Estado específico, no interior de uma determinada realidade. Considerando-se que o terreno particular impõe determinações concretas, a elaboração deve apropriar-se do chão histórico do mundo do trabalho no Brasil, assinalando os principais passos de sua trajetória e destacando os traços mais importantes da formação econômico-social interna, especialmente uma revolução burguesa tardia, passiva e dependente.
No período colonial, afirmou-se uma formação econômico-social baseada na escravidão mercantil, com o velho capital cingindo-se à esfera da circulação, que perdurou após a independência. Os primeiros trabalhadores foram, em sua maioria, seres humanos nativos e depois de origem africana, capturados e transformados em propriedade privada senhorial. No século XIX surgiram as primeiras manufaturas, ainda no interior da produção pré-capitalista de agromercadorias para exportação. Na segunda metade dos oitocentos, porém, o nascente empresariado passou a constituir novas empresas, dando início ao incipiente progresso caracteristicamente burguês e, consequentemente, ao mundo do trabalho assalariado produtivo.
O capital estrangeiro continuou presente e cada vez mais forte, internamente. Também surge o proletariado, que se soma aos escravos, camponeses e pequenos burgueses urbanos para compor um povo em formação. Uma parcela desses agricultores, artesãos e assalariados foi imigrante de origem europeia. Pode-se dizer que na passagem do século XVIII ao XIX se consolidou o fato nacional no mercado, na cultura, nas relações de classe e nas disputas políticas, desaguando em uma afirmação específica do capital: uma sucessão de episódios geograficamente dispersos, em tempo física e historicamente dilatado, sem ato fundante único. Assim surgiu o Estado nacional brasileiro, a primazia das relações capitalistas de produção e a dominação burguesa.
Restou como herança um capitalismo articulado ao subdesenvolvimento, ao monopólio da terra e à dependência, em que a dominação imperialista opera por meio do bloco monopolista-financeiro associado, bem como uma coerção hipertrofiada, a carência de ilustração, o aviltamento aristocrático do trabalho, o racismo, o machismo, a hegemonia passiva, o regime político de democracia restritiva e, por fim, a incompletude da cidadania formal, sob as bênçãos de uma coisa pública parasitária. A via nativa do progresso capitalista manteve e aprofundou a subserviência aos centros econômicos internacionais, cristalizando um lugar subalterno na divisão de trabalho e incorporando, tardiamente, as conquistas técnico-científicas e culturais da humanidade.
Ao mesmo tempo, o pacto burguês-latifundiário promoveu a capitalização no campo, preservando e reciclando o monopólio da terra. Os surtos de prosperidade acentuaram as disparidades regionais e a miséria, expressas pelas migrações internas, com massas expulsas da terra, e pelo inchaço das grandes cidades. A expansão das relações capitalistas e o desenvolvimento econômico do Brasil criaram monopólios e um capital financeiro interior, ambos associados e sob a hegemonia imperialista. Hoje, esse tripé dirige a economia nacional, mas a primazia é dos cartéis multinacionais e privados, perante um capitalismo de Estado enfraquecido. Há, no topo, relações de mútua cooperação, a despeito das contradições endógenas.
A formação econômico-social brasileira adquiriu tais contornos a partir dos anos 1950, especialmente durante o regime militar. Hoje, o movimento superior do capital agrega suas formas anteriormente autônomas. No País, os monopólios, por sua origem e “natureza”, são supraempresariais e financeiros. A oligarquia de novo tipo que os detém controlou os principais setores da economia, transformou as demais frações burguesas em suas tributárias e, por fim, adquiriu um peso dominante na exploração do trabalho, no exercício da hegemonia e nas políticas de governo. A fonte de seu poder é o conglomerado monopolista-financeiro, em cujo centro se localiza a empresa principal, que espraia seu controle aos demais componentes de sua rede.
A funcionalidade dessa forma orgânica se baseia no controle acionário da Sociedade Anônima, que dissocia a propriedade jurídico-formal da econômico-real, garantindo as participações e uniões pessoais ou grupais indispensáveis à superexploração, ao sistema único de dominação e aos novos perfis da ideologia dominante. Eis por que a burguesia brasileira, atrelada aos interesses do condomínio monopolista-financeiro e à presença predominante do capital internacional, jamais poderá sustentar um projeto de desenvolvimento autônomo. A completa emancipação nacional apenas se dará por obra dos trabalhadores e do povo. Só a superação do capitalismo poderá livrar o País, definitivamente, da subordinação ao imperialismo.
Portanto, é preciso redefinir o significado da luta nacional. O desenvolvimento local do capital, ao processar-se no estágio imperialista, produziu uma economia internacionalizada. Com o tempo, gerou a internalização de capitais estrangeiros. O imperialismo, paradoxalmente, se “abrasileirou”, tornando-se uma relação social também intestina e apropriando-se diretamente da mais-valia gerada pelos trabalhadores brasileiros. Assim, a questão nacional se converteu em tarefa proletária na exata medida em que a questão proletária se transformou em imperativo nacional. Embora seja, historicamente, uma tarefa de cunho burguês, na formação econômico-social brasileira a soberania só poderá ser completada para além da ordem vigente.
O condomínio monopolista-financeiro se tornou o maior sugador de trabalho abstrato. A união de seus componentes com o Estado e depois a reestruturação conservadora das últimas décadas potencializaram o sistema único de exploração, coerção e hegemonia, dentro do qual operam as disputas entre as principais frações patronais. A fusão dos órgãos que centralizam a administração pública com os conglomerados e o reforço de seus laços com os grupos internacionais fortaleceram a união pessoal dos magnatas com os partidos e políticos burgueses, com a camada superior da burocracia estatal e com as sucessivas equipes ministeriais, agravando a corrupção intrínseca ao capitalismo. A política, para ser revolucionária, deverá dirigir-se contra o poder constituído e atingir a dominação dos monopólios, ainda que adote formas táticas.
V – O início da transição socialista
Na sociedade civil brasileira contemporânea, existe apenas uma classe dominante: a burguesia urbana e rural, no interior da qual se destaca, como fração prevalecente no topo da economia e do Estado, a oligarquia monopolista-financeira nacional e internacional. Nesse quadro, já não há uma revolução democrática a ser feita e nem uma nação a ser criada, em que pese a enorme importância da luta pelos direitos e liberdades civis e políticos, bem como pela soberania. A única revolução social possível é aquela resultante na derrota burguesa, na refundação do poder político sob a primazia dos trabalhadores, no fim do capitalismo em segmentos chaves da economia e no início da transição socialista.
Quem se contentar com semelhante constatação, entendendo-a de maneira purista e menosprezando as mediações, praticará um doutrinarismo estéril e isolacionista. Mas quem a ignorar fará apenas uma política fenomênica, marginal, carente de base científica, quimérica e impotente, oscilando entre o voluntarismo e o possibilismo. Eis o buraco negro que aniquila as seguintes substituições da teoria pela retórica: a etapa nacional-democrática do reformismo clássico; o projeto de capitalismo nacional independente; o chamado capitalismo democrático; o tal de capitalismo popular; a superação da “falta” de capitalismo; a bizarra tentativa de impor o capitalismo aos capitalistas; a revolução pelo voto; a revolução ética; as microrrevoluções do cotidiano; a revolução sem ruptura; a revolução democrática; a vitória da “produção” contra os especuladores; além de outras vulgaridades empiristas e tentativas de adoçar ou restringir o significado e o alcance das transformações sociais.
Há, portanto, um embate político em torno dos conceitos de reforma e revolução, com profundas repercussões estratégicas e implicações na disputa de hegemonia. As reformas se definem nos marcos postos pela lógica do capital, mesmo que possam atingir concretamente os interesses dominantes, chocar-se com certos aspectos da legalidade vigente e despertar a ira de governantes, em muitos casos explosivamente e até gerando conflitos agudos. A revolução, ao contrário, confronta, necessariamente, a essência ontometabólica da ordem, na teoria e na prática. As reformas são, por definição, alterações superficiais, embora por vezes adquiram características abrangentes. A revolução é sempre uma transformação totalizante, que ultrapassa o terreno de origem pela sua negação radical e pela perspectiva histórica.
Ademais, as reformas significam mudanças interiores a uma determinada formação social. A revolução a transcende. A confusão entre as duas categorias abre caminho para o esquerdismo, que, por móveis exclusivamente valorativos e de coerência formal, recusa e desconstitui a luta por reformas e as mediações táticas. Por outro lado, permite os reformismos de vários tipos, que, por facilidades adaptativas e pela reprodução espontânea da cultura dominante, quando muito limitam o movimento político à obtenção de pequenos ganhos e sempre, formal ou realmente, abandonam os objetivos revolucionários de longo prazo. A permanecerem tais incompreensões polares, que se alimentam mutuamente, a própria reflexão sobre o necessário nexo entre reforma e revolução, tão importante na ação político-prática, perderia sentido.
O objetivo estratégico da revolução brasileira é fundar, no terreno nacional, o socialismo. Trata-se de uma formação econômico-social de transição para além do capital que estará vencido politicamente, mas ainda sobrevivente nas relações de produção e troca, bem como em suas personificações endógenas e reproduções mundiais. Tal é o pressuposto político chave para a construção de um novo Estado, de conteúdo proletário, e de uma nova sociedade civil, complexa, articulada e realmente democrática, que não só representem a negação de seus antecessores, como ainda inaugurem o processo de superação de todas as instituições baseadas na divisão dos seres humanos em classes. Logo, coloca-se a tarefa de combater o poder burguês, para destrui-lo no futuro. Esse processo exige as mais diversas formas de luta, com exceção do conspirativismo e do terrorismo, ambos de inspiração grupal e individual, que substituem o protagonismo das massas populares e são, frequentemente, instrumentalizados pela reação.
Assim, a revolução política brasileira dará início a uma profunda mudança, cujo penhor é o Estado hegemonizado pelo mundo do trabalho. Esse é o projeto de nação pelo qual os comunistas lutam. Uma Pátria livre, soberana, justa e socialista, rumo à sociedade humano-universal, à “associação de indivíduos livres” e à “administração das coisas”, cujos aspectos chaves são os seguintes:
– implantação de uma democracia socialista, entendida como um regime político-constitucional com liberdades e direitos formais e reais, que articulará o sufrágio universal com novas formas de representação surgidas na transformação dos órgãos de luta em órgãos de poder;
– reordenação jurídica do Estado, de forma a garantir-se um corpo legal às novas instituições, aos direitos reais e ao processo emancipatório;
– reorganização da administração pública, simplificando-a, racionalizando-a e subordinando-a aos interesses das maiorias;
– reestruturação e democratização das Forças Armadas, articulando-as com o armamento geral do povo;
– processo de apropriação e controle social dos meios de produção, na cidade e no campo;
– elevação geral nas condições de existência dos trabalhadores assalariados e demais classes populares;
– democratização radical da cultura e acesso do conjunto da sociedade às conquistas espirituais da civilização;
– política externa baseada no internacionalismo proletário, nos interesses do mundo do trabalho, nos anseios nacionais e no combate às agressões imperialistas.
VI – As classes sociais no Brasil
Nas últimas décadas, ocorreram modificações na estrutura de classes da sociedade brasileira. Por cima, fortaleceu-se a importância econômica e o poder político da fração burguesa superior, a oligarquia monopolista-financeira, coadjuvada pelos representantes gerenciais dos investidores, não raro, donos de consideráveis lotes acionários. Por baixo, aumentou a presença do mundo do trabalho, agora alargado pelos proletários ligados aos ramos econômicos emergentes, especialmente àqueles articulados ao surto tecnológico e à expansão da indústria de serviços. Ao mesmo tempo, uma enorme massa de assalariados foi transferida à condição de explorada pelo capital informal ou marginal e ao desemprego crônico.
A revolução, no Brasil, apenas será possível se o proletariado for também, além de dirigente, a principal base de massas e força motriz da luta política. Seu número chegou a 61 milhões – 2/3 das pessoas economicamente ocupadas –, que representam um extraordinário contingente social, sobretudo se considerados seus familiares. Destacam-se, nesse conjunto, os trabalhadores produtivos, especialmente os empregados dos grandes estabelecimentos e ramos: os operários tradicionais, que mudaram de perfil adaptando-se à indústria contemporânea, e os novos profissionais que atendem à demanda ligada às tecnologias eletrônicas e informáticas ou que desenvolviam antigas funções pequeno-burguesas na saúde, no ensino, na cultura, na pequena produção artesanal, no comércio e na agropecuária.
As camadas do proletariado – em sentido amplo – são ligadas à produção de bens materiais ou imateriais e a serviços públicos, assim como socializados pela concentração física, experiência comum, integração intelectual e identidade na categoria econômica. Estão presentes nas empresas contemporâneas de ponta, inclusive nos processos financeiros e formadores da força de trabalho, situando-se no epicentro da produção capitalista. Reúnem trabalhadores qualificados e de nível cultural elevado, que acumularam tradição de lutas, bem como têm suscetibilidade para assimilar ideias socialistas, jogar papel avançado na luta de classes e tornar-se o principal ponto de apoio tanto do novo Estado quanto da transição. Ocupam, pois, uma posição estratégica central.
A expansão dos serviços regenerou formas tradicionais de trabalho produtivo ou improdutivo – proletárias – e criou ramos laborais novos, inclusive nas indústrias que geram mercadorias antes inexistentes. Ocorre uma quádrupla reconstituição do ser proletário: em antigas funções improdutivas; em funções produtivas tradicionais; em novas funções produtivas; em atividades informais. Outrossim, a velha pequena burguesia urbana e rural – há muito tempo sobrevivente no artesanato, nas prestações autônomas, nas empresas em que o dono é obrigado a permanecer trabalhando, nas chamadas profissões liberais, no pequeno comércio ou nas atividades camponesas – desmembrou-se. As suas camadas inferiores, quando não permaneceram em nicho parcelário, experimentaram um processo de proletarização.
Concomitantemente, surgiram e se desenvolveram novos segmentos pequeno-burgueses, sejam trabalhadores urbanos independentes que prestam serviços com ferramentas avançadas à contemporânea estrutura de demanda, nos poros da oferta capitalista, sejam camponeses que possuem máquinas agrícolas e utilizam técnicas sofisticadas em uma produção voltada ao mercado, sejam especialistas em organização produtiva e administrativa que recebem salários remediados e praticam um estilo de vida superior. Tais frações cresceram nas últimas décadas e passaram a ter uma importância maior na estabilidade da hegemonia burguesa, conformando um dos espectros sociais em que a ideologia dominante e o conservadorismo têm certa audiência.
A postura política da pequena burguesia, tendente à duplicidade, não deriva, meramente, de sua renda monetária e de seu nível de vida superior. Sobretudo, provém de seu lugar singular nas relações sociais, que combina em uma só pessoa a figura de trabalhador com a de proprietário dos meios de produção, não raro até mesmo com a de patrão. Como é numerosa e ocupa um patamar intermediário na luta de classes, merece atenção. A política socialista deve procurar abordá-la e polarizá-la, sem deixar de criticar suas ilusões, seu apego às sobras do capitalismo – dos quais se julga beneficiária e até herdeira – e sua emblemática indecisão.
Ao mesmo tempo, aprofundou-se e alargou-se a territorialização do capital, desaguando no aburguesamento do latifúndio, no desaparecimento prático da grande propriedade não-capitalista e no enfraquecimento político dos antigos fazendeiros rentistas. Portanto, já não faz sentido centrar o ataque das forças populares nas remanescentes oligarquias tradicionais e no coronelato, uma vez que perderam sua antiga influência no aparelho de Estado. Hoje, a reforma agrária, mesmo que mantenha o objetivo de democratizar a posse da terra e eliminar a captação privada de renda, não deixa de atingir também os grandes capitalistas do campo, que acumulam a condição de depositários, seja do monopólio fundiário, seja, em alguns casos, das relações arcaicas remanescentes.
O campesinato, tradicional ou atualizado, refluiu em termos quantitativos, relativamente ao proletariado rural. Seu processo de fragmentação acompanha a expansão das relações capitalistas no campo, acelerada pela via da “modernização” conservadora do latifúndio, que acabou sendo apelidada, astuciosamente, de “agronegócio”. Os posseiros, frente à grilagem, proletarizam-se ou regeneraram sua própria condição anterior para além da antiga fronteira. Boa parte dos parceiros e dos arrendatários perdeu suas terras e se assalariou. Muitos familiares dos pequenos e médios agropecuaristas buscaram empregos, impelidos pela desagregação de suas propriedades. Quando remediados, acabaram marcando passo ou caminhando rumo à produção de mercadorias e de capital.
A existência dos sitiantes sem terra ou com pouca terra continuará necessária nos poros do capitalismo, como bolsão de subsistência e reserva estratégica de trabalho. Todavia, experimenta ciclos de retração e regeneração, em função de maiores ou menores demandas por assalariados. O campesinato pobre e médio, com cerca de cinco milhões de pessoas – 20 milhões, englobados seus famikiares –, movidos em suas contradições com latifundiários, atravessadores, magnatas monopolista-financeiros e governantes conservadores, continuarão sendo um setor social importante. Qualquer subestimação de seu papel nas disputas políticas o deixaria à mercê da burguesia e colocaria o proletariado em risco de isolamento.
VII – A frente de unidade popular
O proletariado não tem como romper suas “cadeias radicais” por si só, isoladamente. A realização do propósito transformador exige – além da configuração objetiva de uma situação revolucionária, que torne possível a abordagem vitoriosa sobre a questão do poder estatal – uma aliança com as demais classes e camadas exploradas em sua própria existência, alijadas do condomínio dominante e atingidas pela opressão. Isso significa incorporar todos os segmentos susceptíveis de aderirem às lutas em quaisquer de suas dimensões ou de apoiarem medidas que atinjam os interesses e privilégios “de cima”, parcial ou completamente: as multidões precarizadas ou desempregadas, o campesinato e a pequena burguesia urbana, especialmente suas frações empobrecidas.
Tal espectro econômico-social se concentra nas cidades – onde vivem 80% da população brasileira – e se expressa, politicamente, por meio de partidos, agrupamentos, organizações sociais, movimentos, correntes de opinião, militantes, personalidades e segmentos avançados de massas. Sua configuração em forma de bloco histórico exige que o proletariado assuma a condição de força dirigente no curso das lutas concretas, reivindicando melhorias e reformas, influindo na mobilização e nos rumos trilhados pelos “de baixo”. Passa também pela neutralização dos setores médios com renda superior, mediante alianças táticas que foquem o centro do ataque estratégico nos inimigos comuns e principais.
Nas condições do Brasil, a organização do sujeito-povo, por meio de uma aliança institucional estável e com existência legal, é um meio de ação poderoso e indispensável. Trata-se de um instrumento privilegiado para a unificação e organização caracteristicamente política dos setores avançados das massas, no interior do qual as forças de esquerda sejam, em vez de contorno limitante, o polo mais dinâmico e influente. Como expressão política das maiorias nacionais, tal agremiação propiciará o alargamento da influência progressista na sociedade, conquistando posições e enfrentando os poderosos com chances reais de vitórias. Constitui pois, concomitantemente, um espaço para agregar manifestações extraparlamentares e uma alternativa no sufrágio.
Como expressão política do bloco histórico, com sua diversidade, a frente de unidade popular deve congregar os vários segmentos identificados, completa ou parcialmente, com os anseios nacionais articulados em torno de um programa de reformas com eixos democráticos, anti-imperialistas, antimonopolistas e antilatifundiários. Ademais, precisa defender uma política comprometida com os interesses econômico-sociais imediatos e permanentes dos assalariados, dos camponeses, dos pequeno-burgueses urbanos, das mulheres, dos jovens, das etnias marginalizadas, dos setores discriminados, dos intelectuais progressistas e demais segmentos explorados, oprimidos ou descontentes com a situação em que vivem.
Sua construção poderia assumir o contorno de uma coligação eleitoral estável, que permaneça após suas campanhas periódicas. Outra possibilidade seria uma agremiação nova e registrada institucionalmente, com respeito à diversidade interna. Há, também, o caminho de uma federação formada por partidos, organizações, movimentos e cidadãos. Em qualquer caso, deverá manter a autonomia dos componentes, com espaço reconhecido para suas identidades filosóficas, ideológicas, políticas, orgânicas e simbólicas. Como processo, pulsará efetivamente por baixo. Todavia, em vez de existir apenas em eventos e plenárias repetitivas, frouxas e sem direção política formal, terá que ser orgânico.
O conteúdo social da frente de unidade popular se consubstanciará e alcançará ressonância por meio de um programa. Como referência de luta social, ação legislativa e administração executiva, sua plataforma tem que ser, além de nacional, colada à correlação de forças, ao nível de organização do povo brasileiro, ao estágio da construção contra-hegemônica e ao imaginário das multidões. O embate por medidas emergenciais e reformas abrangentes merece atenção especial. Algumas se chocam diretamente com os interesses do capital; outras, apesar de confrontarem a política dominante, são teoricamente compatíveis com os fundamentos do modo de produção vigente. Consideradas na sua totalidade, são progressivas.
A construção do movimento revolucionário real, que justifica o empenho na defesa da unidade popular ampla, parte do princípio de que o embate estratégico pelo socialismo exige uma série de atitudes e iniciativas mediadas. Implica a articulação da vontade transformadora radical com a correlação de forças e a satisfação das necessidades prementes do povo. Representa, igualmente, a resolução prática dos graves problemas que afligem as maiorias e os passos capazes de lhes garantirem uma vida melhor, na ordem e contra a ordem. Por fim, contempla os múltiplos anseios dos “de baixo”, a riqueza multilateral das preocupações existentes na sociedade e o conduto factível para o transcrescimento rumo à emancipação.
A aliança unitária das forças populares, antes de uma simples opção política, é uma determinação calcada na formação econômico-social brasileira, inclusive nos traços consolidados por meio da via específica de afirmação histórica cumprida pela revolução burguesa e pela primazia do capital, associados às complexidades e heterogeneidades de um povo e de uma nação espalhados em território continental. Ademais, é fundamental e urgente para sustentar a realização viva e mediada dos propósitos estratégicos no atual período da luta de classes, especialmente quando a sociedade política burguesa está profundamente desacreditada. Eis por que se trata de tarefa prática, indispensável, prioritária e imune a interdições menores, como o sectarismo.
Portanto, a frente de unidade popular, em vez de mais um pretexto para disputas ideológicas e doutrinárias, à margem da luta de classes real, será um fórum amplo e privilegiado de mobilização, unificação e organização das massas. Só com tal característica poderá vir a ser o polo unificador e eficaz do combate à direita. Assim, o seu propósito, no embate contra os sucessivos governos conservadores e o Estado do capital, é construir um regime político de democracia real para o povo brasileiro e realizar as profundas transformações sintetizadas em um programa consensual de unidade, que inaugurem um novo caminho para o Brasil e acumulem forças para colocar em um patamar mais elevado a luta pelo socialismo.
Com o objetivo de orientar o trabalho de suas instâncias internas e a ação política de seus membros, bem como de apresentar uma proposta às forças e militantes socialistas e progressistas interessados em construir a frente de unidade popular, o PRC adota um Programa Mínimo. Tal plataforma, vertebrada pelos eixos democrático, anti-imperialista, antimonopolista e antilatifundiário, tem como elemento central a implantação da República Popular e Democrática, regime político-constitucional necessário e propício à realização de uma nova alternativa para o Brasil.
Projeto de Resolução da Comissão Nacional de Unificação Comunista
ao V Congresso (unificado) do PRC
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