Os laços de um ex-militar do DOI-CODI com o infiltrado entre manifestantes em São Paulo

Capitão vivia em apartamento de general que atuou em órgão de inteligência da ditadura. Ativistas cobram explicações sobre monitoramento, admitido por Exército nesta semana

Se estivéssemos na década de 1970, o trabalho de monitoramento de manifestantes feito em São Paulo pelo capitão Willian Pina Botelho, que usou nome falso no Tinder para se aproximar de “meninas de esquerda”, seria chamado de paquera. Era assim que os militares que trabalhavam no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo chamavam a aproximação dos infiltrados com grupos considerados de interesse pelo regime militar. A anedota, porém, não é o único eco da ditadura que reverbera na trajetória do capitão que, segundo o Exército reconheceu nesta semana, “acompanhava” manifestantes contrários ao Governo Temer em São Paulo.

Willian Pina Botelho vivia, até o mês passado, em um apartamento na avenida Brigadeiro Luís Antônio registrado em nome de Manoel Morata de Almeida. Morata era capitão do Exército, assim como Botelho é hoje, quando ingressou no DOI-CODI de São Paulo, entre o final dos anos 70 e início dos 80. Fazia parte de uma geração de militares que não tinha relação com a morte das mais de 60 pessoas que ocorreram ali, ou com o sumiço de outras 19, além das dezenas de torturas de militantes que ocorreram na sede do extinto serviço de inteligência do regime militar. “O DOI-CODI de 1979 não é a mesma coisa que o DOI-CODI de 75”, diz o jornalista e escritor Elio Gaspari, autor da série de cinco livros sobre a ditadura.

Depois de 1979, o DOI-CODI deixou de interrogar e torturar e passou a acompanhar os movimentos dos militantes, coincidindo com os primeiros sinais da curva terminal do regime. “É o período dos atentados a bomba contra bancas de jornais em São Paulo e de infiltração em partidos políticos, sindicatos, igrejas e movimentos estudantis”, explica o jornalista e escritor Marcelo Godoy, no livro A casa da vovó (Editora Alameda) _o título é uma referência a como os militares chamavam o DOI-CODI na época: “lá é que era bom”. “Tratava-se de vigiar muito mais do que punir”, define Godoy.

Uma das operações do período foi a Pira, coordenada pela nova geração do DOI-CODI, que incluía Manoel Morata. A ação, em 1982, infiltrou agentes secretos nos hotéis e alojamentos de estudantes de todo o país que participavam do 34º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE). Naquele Congresso ninguém foi preso, mas muitos foram monitorados.

Trinta e quatro anos depois, o episódio do capitão Botelho devolve o enredo envolvendo estudantes e monitoramento aos arredores do prédio do DOI-CODI, na rua Tutóia, 921. As pontas se juntam em um quadrilátero que é possível percorrer em menos de uma hora a pé. O símbolo da repressão da Tutóia acabou em 1991 e deu lugar ao 36º Distrito Policial. É no cruzamento da rua com a Abílio Soares que vive Manoel Morata. Pela mesma via, o general chega ao Círculo Militar, do qual é presidente. Por ali também alcança o Comando Militar Sudeste, onde serve como general de brigada no mesmo endereço em que Botelho está lotado como capitão. A um quilômetro de distância dali, fica o apartamento de Morata onde Botelho vivia.

A reportagem tentou contato com Morata pessoalmente e por telefone, mas o general não quis conceder entrevista nem falar sobre o caso. O Exército afirmou que, “por ser de foro pessoal, a instituição não se manifestará” sobre a residência do capitão em São Paulo.

Movimentação desde 2014

A natureza da ligação entre Morata e Botelho é apenas uma das zonas nebulosas envolvendo os passos de “Balta Nunes”, como ele se apresentava, enquanto agente em campo entre manifestantes em São Paulo. Chegou à reportagem ao menos um relato de que ele se apresentou ainda em 2014 com o mesmo codinome que usou nas conquistas ideológicas no Tinder.  E, enquanto ativistas questionam se há, de fato, respaldo legal para a operação de inteligência em que Botelho atuava, nesta semana houve um choque público entre as versões do Exército brasileiro e da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo a respeito.

Na última terça-feira, o comandante-geral do Exército, general Eduardo da Costa Villas Bôas, afirmou que “houve uma absoluta interação com o Governo do Estado” para a operação em 4 de setembro, que envolveu a detenção de 21 manifestantes antes de um ato contra Temer na cidade. Fotografado como parte do grupo revistado pela polícia naquele dia, Botelho foi o único a não ser preso, o que levantaria suspeitas e ajudaria a revelar sua verdadeira identidade.

Villas Bôas rejeitou o termo infiltrado, mas confirmou que, sim, Botelho estava “acompanhando” o grupo de manifestantes. Já secretaria de Segurança do Governo Alckmin seguiu negando, como antes, que a pasta estivesse em uma ação conjunta com as Forças Armadas naquele domingo. Depois do constrangimento com a gestão tucana, o Exército ressaltou apenas, por meio de nota, que a integração com os órgãos de segurança é “primordial” para o sucesso de uma operação de inteligência. “O acompanhamento de manifestações de rua está inserido no contexto das operações de inteligência. Ressalta-se que a interação e a sinergia entre os órgãos competentes é fator primordial para o êxito nesse tipo de operação.”

Sem entrar em detalhes, a corporação repetiu que abriu uma sindicância para apurar o caso, que tem de ficar pronta até meados do mês que vem. Não se sabe exatamente o que procedimento visa responder, mas, se depender dos ativistas que seguem o tema, a lista não seria pequena.

Se na década de 1980, época em que o então capitão Morata prestava serviços ao Destacamento de Operações de Informação, as ações do DOI-CODI eram realizadas com base na Lei de Segurança Nacional, de 1935, hoje o Exército evoca a Lei Garantia de Lei e da Ordem para afirmar que está dentro da lei o monitoramento de manifestações. “O Exército tem sido empregado frequentemente nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO)”, disse a corporação, por meio de nota enviada no final de setembro. Essa lei foi sancionada por Dilma Rousseff no final de março de 2014, poucos meses antes da Copa do Mundo no Brasil, quando o país ainda ecoava os gritos de “não vai ter Copa”, iniciado nas ruas em junho de 2013.

Foi em março daquele mesmo ano de 2014, que alguém que assinava como Baltazar Nunes fez um contato, por e-mail, com uma fonte especialista em manifestações públicas, que pediu para não se identificar. Além de se fazer chamar no e-mail de Nunes – o mesmo codinome usado no grupo de manifestantes -, ele se identificou como membro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência. A fonte está convencida de que se trata do mesmo Balta Nunes ou capitão Botelho, que menos de um ano antes, em novembro de 2013, publicou um artigo na revista A Lucerna, uma publicação da Escola de Inteligência Militar do Exército, intitulado A inteligência em apoio às operações no ambiente terrorista. O contato ao vivo não chegou a ser feito. “Baltazar” queria mais informações sobre as manifestações de rua que vinham ocorrendo com mais intensidade desde 2013 e que poderiam se intensificar com a chegada do Mundial nos próximos meses.

Não há outros sinais que permitam dizer que Willian Botelho permaneceu atuando como “Balta Nunes” desde então. O certo é que a lei aprovada na época, e já vista com ressalvas por parte dos especialistas que criticaram Dilma e o PT por ela, permite operações de Garantia da Lei e da Ordem em dois escopos: ações pontuais, e as de monitoramento, chamadas “ações preventivas”.

Para que as Forças Armadas possam operar uma ação pontual, é preciso que o presidente da República faça a solicitação. “A decisão do emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem compete exclusivamente ao presidente da República”, diz o texto da lei. Três dias antes dos 21 manifestantes serem detidos em São Paulo, o presidente assinou um decreto autorizando o uso das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem. De acordo com a publicação no Diário Oficial, o período de atuação das Forças Armadas se limitava ao dia 04 de setembro, data em que a tocha Olímpica passaria pela cidade. O procedimento foi repetido por causa da tocha em outras cidades e dificilmente explicaria a ação de Botelho nos dias prévios.

Pedro Abramovay, advogado e ex-secretário Nacional da Justiça no Governo Lula, afirma que o Exército não pode fazer uma operação da Garantia da Lei e Ordem (GLO) sem um pedido do Estado onde ela acontecerá. “O Exército não tem direito de monitorar manifestante a partir da GLO. A Polícia Federal talvez, a Polícia Militar eventualmente. A não ser que o governador tenha pedido para fazer isso, num decreto público”.

Na semana das detenções, o militar afirmou a interlocutores, ainda se identificando como Balta Nunes, que não foi levado à delegacia com os demais porque portava um documento de identidade falso. “Se você diz que você não é quem você é, isso é falsidade ideológica”, diz Abramovay. “E se alguém mandou ele dizer que ele é quem ele não é, essa pessoa é coautora do crime”.

Outro ponto que o Exército pode ter que explicar é a maneira como as detenções ocorreram. Parte do grupo de manifestantes se encontrou no metrô Consolação antes da manifestação. De lá, foram a pé até o Centro Cultural Vergueiro, a quatro quilômetros dali, encontrar os demais. Ali, dezenas de policiais os esperavam. Segundo Ariel de Castro Alves, advogado e membro do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), se foi o capitão Botelho que conduziu o grupo até lá, isso se constitui em um flagrante preparado. “Ele foi uma pessoa que de alguma incitou os manifestantes a se encontrarem naquele lugar”, diz. “Esse tipo de flagrante preparado é considerado ilegal”. Castro Alves acha difícil que o capitão tenha agido sozinho. “Eu estranharia ser uma ação isolada pelo fato dele ser um capitão, não é um amador, é um profissional, que dificilmente atuaria sem o conhecimento dos seus superiores, sem estar em uma ação planejada”.

Para Abramovay, as questões não respondidas até o momento levantam a suspeita de que, de fato, não era uma ação isolada. “O maior medo é que isso seja uma coisa sistemática”, diz. “Se a gente não entender exatamente esse caso – quem deu a ordem, por que, qual é essa operação, quanto custou – o medo é que isso seja um grande sistema de monitoramento de civis por parte dos militares.”

Publicado no jornal El País

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