O 13 de Maio é uma das datas mais emblemáticas da história do Brasil. Para alguns, é vista como o dia da Abolição da escravatura no Brasil, para outros, é entendida como um dia de resistência e luta contra uma libertação incompleta, que não possibilitou aos ex-escravos uma inserção cidadã na sociedade brasileira e, também, contra a desigualdade social, o preconceito racial e o racismo. Para muitos, significa o momento de louvar antepassados, que em outras vidas foram seres humanos escravizados e que hoje são seres de paz, luz e sabedoria: os Pretos Velhos. Para todos, dentro da atual conjuntura política e social em que vivemos, deve ser um momento de reflexão, fortalecimento, organização e luta contra a perda de direitos trabalhistas e sociais duramente alcançados ao longo da história.
[…] Será…
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão?
Será…
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão? […]
Cem anos de liberdade. Realidade ou Ilusão?
G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, 19881.
A Lei Áurea: Liberdade sem direitos sociais
Em 1988, ano em que se cumpriam 100 anos da assinatura da Lei Áurea, o tema da abolição estava fortemente presente na sociedade brasileira, que vivia, então, um momento de efervescência política e social, mobilizada pelas lutas em torno da campanha pelas “Diretas Já” e pela Constituinte, que almejava, finalmente, a construção de uma democracia que não levasse em conta apenas direitos civis e políticos, mas, sobretudo, direitos sociais. Nesse contexto era central a luta pelos direitos dos grupos socialmente mais vulnerabilizados, entre eles os negros. Essa luta tinha como principal expoente o Movimento Negro que, entre outros pontos, questionava práticas, costumes e narrativas históricas que contribuíam para a manutenção do preconceito racial, do racismo e da desigualdade.
No carnaval daquele ano, muitas escolas de samba, um dos elementos mais importantes da cultura afro-brasileira, tiveram como temática o centenário da Abolição, mas, como reflexo da conjuntura acima exposta, em sua maioria, as narrativas por elas desenvolvidas buscavam fugir do lugar-comum e dos esteriótipos construídos ao longo da história sobre a data, desenvolvendo uma narrativa crítica sobre ela e seus principais atores. O samba-enredo da Mangueira, cujos versos foram resgatados anteriormente, é um exemplo claro desse quadro de questionamentos e críticas. Mas quais são as raízes desse contexto? É preciso recuar um pouco no tempo para entendê-las.
A Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel, na função de regente do Império do Brasil, em 13 de Maio de 1888. A lei marcou a extinção da escravidão no Brasil, o que levou à libertação de cerca de 750 mil escravos.
“Durante três séculos e meio de história brasileira, a população negra e africana foi tratada como mercadoria/propriedade privada. Importou-se ao longo desses mais de três séculos e meio de regime escravocrata, 4 milhões de negros africanos, ou seja, 40% das importações totais das Américas – considerado uma das mais volumosas transferência forçada de pessoas havidas na História. Podendo ser objeto de compra, venda, empréstimo, doação, penhor, sequestro, transmissão por herança, embargo, depósito, arremate e adjudicação, a pessoa africana escravizada e seus descendentes no Brasil se encontravam na condição de uma mercadoria com a singularidade de que podiam ser punidos quando cometiam um crime, através do Código Penal. Historicamente, em 13 de Maio de 1888, o Brasil abole a escravidão racial, ou seja, devolve a liberdade individual à população negra e africano-descendente”2.
A assinatura da lei Áurea foi resultado de um longo processo de disputas no qual, já há algum tempo, manifestações pedindo a libertação dos escravos se faziam presentes nas ruas de importantes cidades do país, como, por exemplo, São Paulo e Rio de Janeiro. Na verdade, desde cedo, os negros estiveram mobilizados em torno da luta por sua liberdade, porém, a historiografia oficial brasileira e as narrativas dominantes sempre buscaram inviabilizar ou criminalizar os movimentos sociais e de resistência. Um dos principais ícones da luta dos negros, considerado o mais importante até hoje, foi o movimento do Quilombo dos Palmares, liderado por Zumbi dos Palmares. Os quilombos eram formados por escravizados que fugiam das fazendas, mas há dados históricos de que os maiores deles também abrigavam brancos pobres.
No entanto, a Lei Áurea, como dito acima, garantiu apenas, e relativamente, a liberdade individual à população negra e afrodescendente. Não criaram-se as condições para que essa população alcançasse um tipo de inserção mais digna na sociedade. Segundo Florestan Fernandes, em seu livro “A integração do negro na sociedade de classes”, as classes dominantes nada fizeram, por exemplo, para a inserção dos ex-escravos no novo sistema de trabalho pós-abolição. Tampouco foi provido algum recurso à população recém-saída da condição de escrava. Esse recurso, que seria o acesso à terra, importante para que as famílias iniciassem uma nova vida, não foi concedido aos negros. De acordo com Fernandes, após o fim da escravidão, “Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho”3
O 13 de Maio e o Movimento Negro
Pelas razões descritas acima e por muitas outras, o 13 de Maio não é comemorado pelo Movimento Negro. Pela visão eurocêntrica, predominante até os anos 1970/1980, Isabel foi a heroína dos negros, discriminados, perseguidos, coisificados durante o Brasil colônia e império e teria bastado a rubrica real para a liberdade dos escravos ser alcançada no final do século XIX, passando assim os escravizados a serem portadores de humanidade; livres e iguais aos brancos. Vimos que isso é uma falácia. O Brasil foi o último país do Ocidente a libertar os escravos, e o gesto de bondade de Isabel, na verdade, foi uma consequência histórica da decadência do regime escravocrata e da luta dos negros e dos defensores da abolição. A abolição foi muito mais simbólica que concreta.
Nessa perspectiva, com a qual concordo, a escravidão só teria fim, realmente, se tivessem sido criados mecanismos e garantias para o tratamento igualitário de negros e brancos. Isso não aconteceu e, a partir da cultura escravocrata e racista fortemente difundida no Brasil, como diz um outro trecho do samba da Mangueira de 1988, tal conjuntura apenas possibilitou que a “liberdade” dos negros fosse uma nova prisão. Aos pretos e mulatos, livres da senzala, restou a miséria das ruas e das favelas, engrossando a massa de desempregados ou subempregados.
Diante desse quadro, mesmo sendo impossível negar que o 13 de Maio faz parte do calendário histórico brasileiro, para o Movimento Negro, essa data é algo a ser reelaborado, uma vez que houve apenas uma abolição formal, e os negros continuaram excluídos do processo social. Como já dito anteriormente, com a efervescência política de 1988, quando a abolição da escravidão racial brasileira completava 100 anos, o 13 de Maio ganhou um novo significado político na história brasileira.
“O movimento social negro no Brasil e na Bahia, em maio de 1988, deflagrou a campanha 100 anos sem Abolição e 100 anos da falsa Abolição para dar visibilidade ao que estava ausente na história do Brasil – as precárias condições socioeconômicas e educacionais que a população negra saiu da escravidão, ou, à moda de Florestan Fernandes, a não “integração do negro na sociedade de classes no Brasil”, após 100 anos de abolição. Audiências públicas, passeatas, manifestações políticas foram realizadas nesse período pelo movimento social negro no Brasil e na Bahia, para denunciar as desigualdades raciais vividas pelas populações negras no acesso a direitos básicos, enfatizando-se como o 13 de Maio não era uma data de festa para os negros brasileiros, pois a liberdade não se completa sem o direito à igualdade. Para o ativismo negro naquele momento, o 13 de Maio, que até então vinha sendo festejado oficialmente como “o dia da população negra”, era uma data esvaziada de significado político para a população negra, já que, a partir dela, o Estado brasileiro não desenvolveu políticas de inclusão social dessa população, ao contrário, as políticas desenvolvidas para a população negra no pós-abolição foram políticas de exclusão, marginalização e criminalização. Dessa forma, o 13 de Maio se tornou, o Dia Nacional da Luta contra o Racismo. Isso significa que deve ser um dia no qual reflitamos sobre o que nós – educadores, governantes, políticos, ativistas, cidadãos brasileiros e brasileiras precisamos fazer, no plano individual e coletivo, para construirmos uma sociedade sem racismo, ou seja, uma sociedade na qual o acesso a direitos não seja determinado pela raça/cor das pessoas, enfim, uma sociedade na qual as pessoas tenham direitos garantidos independente da sua raça/cor”4.
Além dessa luta pela ressignificação do 13 de Maio, outras datas passaram a ter papel central para o Movimento Negro, entre elas, a principal, que é o dia 20 de Novembro, dia de morte de Zumbi dos Palmares, em 1695. De fato, Zumbi tornou-se um nome forte da cultura popular e o seu dia passou a compor a Semana da Consciência Negra, representando uma oportunidade para se refletir sobre a questão racial e o racismo na sociedade brasileira. Na verdade, Mais do que homenagear apenas a Zumbi, o 20 de Novembro busca representar o “quilombismo como alternativa política de matriz própria. Munido pela resistência quilombola, o afrobrasileiro compreende seus parâmetros, sendo protagonista dos feitos libertários, autônomos e culturais. Para tanto, é preciso problematizar o conflito étnico existente entre a paralisia branca e o movimento negro, pondo em xeque o mito falacioso da democracia racial”5.
Aspectos religiosos e culturais
Além das questões sociopolíticas que envolvem o 13 de Maio, a data também tem seu simbolismo religioso e cultural, uma vez que, para os umbandistas, representa o dia de Preto Velho. Os Pretos Velhos são entidades de umbanda, espíritos que se apresentam em corpo fluídico de velhos africanos que viveram nas senzalas, majoritariamente como escravos que morreram no tronco ou de velhice, e que adoram contar as histórias do tempo do cativeiro. São divindades purificadas de antigos escravos africanos, sábios, ternos e pacientes, que dão o amor, a fé e a esperança aos “seus filhos”. Os Pretos Velhos representam o espírito de superação e transcendência de toda a tortura e sofrimento vividos por escravos no passado; quando homens negros eram tratados como objetos de comércio e lucro dos grandes senhores.
Culturalmente falando, o contexto do aparecimento de tal simbologia, relaciona-se ao período colonial e escravista no Brasil, quando as grandes potências europeias da época subjugaram e escravizaram negros vindos de diversas nações africanas, transformando-os em mercadorias, seres sem alma, apenas objetos de venda de trabalho. Para a África, o tráfico negreiro custou caro: em quatro séculos foram escravizados e mortos cerca de 75 milhões de pessoas. Esses negros, que foram brutalmente arrancados de sua terra, separados de suas famílias, passando por terríveis privações, trabalharam quase que ininterruptamente nas grandes fazendas de açúcar da colônia. O trabalho era tão árduo, que um negro escravo no Brasil não chegava a durar dez anos. Diante de tão brutal situação, o que restava ao negro africano escravizado no Brasil era sua fé, e era em seus cultos que ela resistia, como um ritual de liberdade; protesto à reação contra a opressão do branco. As danças e cânticos eram a única forma que tinham para extravasar e aliviar a dor da escravidão.
Sabe-se que a escravidão, apesar de toda sua brutalidade, não foi uniforme, existindo diversos tipos de relação de exploração. Muitos escravizados exerciam tarefas como reprodutores, caldeireiros ou carpinteiros, por exemplo, ou trabalhavam na “Casa Grande”, constituindo-se como “escravos domésticos”. Outros, ainda, conquistavam a alforria através de seus senhores ou das leis (Sexagenário, Ventre Livre e Lei Áurea). Com isso, foram pouco a pouco conseguindo envelhecer e constituir seu culto aos Orixás e antepassados, tornando-se referência para mais jovens, ensinando-lhes os costumes da Mãe África. Assim, através do sincretismo, conseguiram preservar sua cultura e religião. Esses são os Pretos Velhos da Umbanda6.
O 13 de Maio no contexto do Golpe
Em Maio de 2016, a democracia Brasileira foi duramente golpeada, quando um governo ilegítimo e antipovo usurpou a Presidência da República, retirando de seu posto a presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2014 com mais de 50 milhões de votos. Esse governo, que agora completa um ano, tem como uma de suas principais características o total desprezo pelos interesses dos mais pobres. O mesmo desprezo característico dos “senhores de engenho”, para com os escravizados, ou seja, o mesmo desprezo da “Casa grande” para com a Senzala, que tem sido a mesma posição adotada pelas elites em relação ao povo. Para eles, o pobre não deve ter nenhum direito, a não ser o de sustentá-los com sua mão de obra barata. Devem até agradecê-los por lhes dar um emprego, que mal garante o de comer, assim como os “senhores de escravos” acreditavam que os escravizados deviam lhes agradecer por deixá-los vivos e lhes dar trapos para vestir e um prato de comida.
Nesse um ano de governo golpista estão sendo atacados muitos dos mais importantes direitos conquistados pela parcela mais pobre da população brasileira ao longo da história, como os direitos trabalhistas e previdenciários. Querem terceirizar e retirar as obrigações dos patrões para com seus empregados, dizendo que eles poderão negociar livremente, como se um escravo pudesse negociar com seu “dono”. Querem que trabalhemos até a morte para manterem sua vida de luxo e as orgias financeiras do capitalismo. Em suma, querem reconduzir-nos, novamente, à escravidão institucional, ainda que pintada em cores de liberdade.
Desta forma o 13 de Maio atual ganha um valor simbólico que talvez não tenha existido ao longo desses últimos 129 anos, pois sabemos que a maior parcela da população a ser afetada por tais medidas serão os negros pobres. Torna-se, portanto, fundamental resistirmos, assim como nossos antepassados resistiram e lutarmos, assim como Zumbi lutou e, se for necessário, devemos, tal como o grande herói, entregarmos nossa vida por isso, pois é somente a nossa organização e luta contra as ditas “reformas” propostas pelo governo golpista que permitirão a nossa existência como classe e como seres humanos livres e dignos que devemos ser.
Notas:
1 Composição de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.
2 CARDOSO, Nádia. (ex-Coordenação de Diversidade Negra, de Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos e ex-Diretoria de Inclusão e Diversidade). Disponível em: <http://arrastaodobeco.maracatu.org.br/2013/05/13/ressignificando-o-13-de-maio-na-historia-do-brasil/>.
3 FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Vol. I, “O Legado da Raça Branca”. São Paulo: Globo Editora, 2008.
4 CARDOSO, Nádia. Idem.
5 DA SILVA, Marcos Fabrício Lopes. “20 de Novembro ou 13 de Maio?”. Boletim Opinião. UFMG. Nº 1675. Ano 36. 9 de set. 2009. Disponível em <https://www.ufmg.br/boletim/bol1675/2.shtml>.
6 Revista Espiritual de Umbanda. Edição Especial 1. Editora Escala.
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