Análise | O Filme Jovem Karl Marx

O filme O Jovem Karl Marx do diretor haitiano Raol Peck aborda basicamente o período compreendido entre 1843, quando Karl Marx (1818-1883) era editor da Gazeta Renana, e a publicação do Manifesto do Partido Comunista em 1848. Heinrich (2018) 1 , biógrafo de Marx, comentou que a película é muito competente e que, de modo geral, é fidedigna com a trajetória pessoal do protagonista, contudo, algumas questões servem apenas à adaptação para as telas, como, por exemplo, a concepção que Marx já era um lutador radical e que seu jornal já era perseguido àquela altura do início da década de 1840. Ou, por exemplo, a história de como seu companheiro, Friedrich Engels (1820-1895), conheceu sua mulher, Mary Burns (1827-1878), é puramente fictícia, e alguns aspectos de sua vida, como uma fábrica de seu pai na Inglaterra, não possuem respaldo do biógrafo. Fato é que um dos aspectos que chamam a atenção é o papel das mulheres no filme, Jenny Von Westphalen (1814-1881) esposa de Marx é mostrada em um papel ativo na luta política e não meramente em segundo plano, também o caso de Burns, que aparece na vanguarda da luta dos operários, além de ser representada sua origem irlandesa e a situação da opressão dessa mão-de-obra na Inglaterra.

Os pormenores e as licenças poéticas da produção cinematográfica ficarão em segundo plano nesta análise, vou me ater ao contexto histórico, ao desenvolvimento intelectual de Marx,e o desenvolvimento do movimento operário. É necessário ressaltar que Marx, à época, em 1843, era um jovem hegeliano de orientação democrática radical, ainda não era um revolucionário comunista. Contudo, a partir da lei sobre a questão do furto de madeira 2 , cena que inicia o filme, Marx passou a se interessar pelas questões econômicas e a perceber as contradições fundamentais da sociedade dividida em classes. E, no ano de 1844 3 , Marx escreveu sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel 4 , livro que marcou a transição do jovem para o adulto, “o que importa, para Hegel, é apresentar o monarca como homem-Deus real, como a encarnação real da Ideia” (p. 50), assim criticou Marx as posições de Hegel. Em contrapartida, ao dizer que “a constituição representativa é um enorme progresso, pois ela é a expressão aberta, não falseada, consequente, da contradição política moderna”, isto é, “a contradição declarada” (p. 99), Marx já enxergava os limites do Estado burguês, da institucionalidade burguesa e a contradição elementar da sociedade de classes. Que “em sua própria história, aparece a luta entre pobres e ricos, patrícios e plebeus etc.” (p. 131) e, agora, “o proletário já começa a entrar em luta contra os burgueses” (p. 161), pois “o que constitui o proletariado não é a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza produzida artificialmente” (p. 162). A influência de Engels para o estudo da economia política clássica de Adam Smith (1723-1790), David Ricardo (1772-1823), James Mill (1773-1836) e Jeremy Bentham (1748-1832), representada na película, produziu seus efeitos em 1844, nos Manuscritos Econômicos-filosóficos 5 nos quais o jovem Marx escreveu que a classe trabalhadora “tem sempre de sacrificar uma parte de si mesma, para não perecer totalmente”, o “capital é trabalho acumulado” e o “trabalhador torna- se sempre mais puramente dependente do trabalho” (p. 26). Outrossim, “a última consequência é, portanto, a dissolução da diferença entre capitalista e proprietário fundiário, de modo que, no todo, só se apresentam, portanto, duas classes de população, a classe trabalhadora e a classe dos capitalistas” (p. 74), isto é, a sociedade “tem de decompor-se nas duas classes proprietárias e dos trabalhadores sem propriedade” (p. 79). É nos Manuscritos que aparece o conceito de alienação (p. 80), tão importante no pensamento marxiano, além de demonstrar clara influência ricardiana, escreveu Marx: “o trabalho em geral é a essência da riqueza” (p. 101) e isso constitui “a oposição entre o trabalho e o capital” (p. 103), não obstante, depreendeu que “o comunismo é (…) a expressão positiva da propriedade privada suprassumida” (p. 103).

O filme mostra o exílio de Marx em Paris e seu contato com Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), àquela altura o jovem ainda admirava o anarquista francês. Proudhon 6 acreditava que um sistema mutualista e cooperativo de pequenos produtores iria dar fim ao capitalismo, ele é o autor da famosa frase “o que é a propriedade? (…) é um roubo” (p. 20) e sua corrente foi influente no movimento operário francês. “Além disso”, escreveu Proudhon, “não disponho de sistema: eu desejo o fim do privilégio, a abolição da escravatura, a igualdade de direitos, o reino da lei. Justiça, nada senão Justiça” (p. 22). Marx, na película, também encontrou Mikhail Bakunin (1814-1876) que foi discípulo do francês, defendia o ateísmo militante, era contra as lutas por reivindicações parciais, defendia a dissolução imediata do Estado e era contra a organização partidária. Foi “um dos pais da futura tendência anarcossindicalista” (FOSTER, 2020, p. 85) 7 . Uma figura muito importante que não aparece no filme é Louis Auguste Blanqui (1805-1881), que acreditava em uma ditadura de uma vanguarda revolucionária, sua corrente foi majoritária na Comuna de Paris de 1871 8 . Wilhelm Weitling (1808-1871), alfaiate e um dos grandes nomes do socialismo utópico aparece e troca duras farpas com Marx e Engels, o que demonstra as disputas haviam no seio do movimento operário.

Dentre essas disputas representadas no longa-metragem podemos evidenciar a primeira delas, o livro Crítica da Crítica Crítica 9 que, segundo a produção cinematográfica, foi ideia de Jenny Marx, o que pode ser uma anedota, pois, segundo Heinrich (2018), “todos os detalhes são puramente fictícios”. Contudo, o livro referido, que ficou para a história como A Sagrada Família é “o resultado do trabalho conjunto de Marx e Engels e foi encaminhado a partir do segundo encontro dos dois pensadores, em agosto de 1844, em Paris” e é “o único escrito rigorosamente filosófico do período precoce publicado pela intervenção direta dos autores” (p. 16). Ele é endereçado para Bruno Bauer (1809-1882) e seus “consortes”, escreveram Marx e Engels: “o que nós combatemos na Crítica baueriana é justamente a especulação que se reproduz à maneira de caricatura” ela é “a expressão mais acabada do princípio cristão-germânico, que faz sua derradeira tentativa ao transformar a crítica em si numa força transcendental” (p. 15). Pois, um conceito muito caro a Marx e que remete à sua herança hegeliana é o conceito de suprassunção, isto é, a negação, a conservação e a elevação, em outras palavras: a crítica, no ponto de vista marxiano, a grosso modo, é (ou deve ser) superação. Não obstante, como a película demonstrou, Marx e Engels fazem uma defesa do “Proudhon real” contra o “Proudhon caracterizado” dos Críticos críticos, pois o real “é um francês leviano e pergunta se o infortúnio é uma necessidade material, se ele é uma obrigação”, já o caracterizado, “pergunta se o infortúnio é a determinação moral do ser humano” (p. 35). Em suma, os Críticos críticos esterilizaram o potencial revolucionário do pensamento proudhoniano, criando uma caricatura, uma distorção do anarquista revolucionário que defendia o fim de toda a autoridade10.

O longa-metragem procura demonstrar o desenvolvimento da amizade entre Marx e Engels, mas também o desenvolvimento da trajetória política de ambos como, por exemplo, sua entrada na Liga dos Justos e sua luta ideológica interna, que será fundamental, pois a Liga permitiu que ambos trabalhassem na sua organização e na formulação de seu programa que ficou consagrado no Manifesto do Partido Comunista 11 . Entretanto, é relevante salientar que Marx e Engels substituíram o nome para Liga dos Comunistas que se tornou o embrião para a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) que seria fundada em 1864. E substituíram seu lema de “Todos os homens são irmãos” para “Proletários de todos os países, uni-vos” (MARX; ENGELS, 2014, p. 155), o que evidencia que a situação de contínua expansão capitalista e sua tendência inerente de romper as fronteiras nacionais e as tensões postas entre as nações premia as organizações operárias a formarem uma organização internacional para poderem triunfar. Nesse ínterim de militância e participação da organização da Liga dos Justos, Proudhon se recusou a ser um correspondente da Liga na França e lançou seu livro Filosofia da Miséria 12 , de modo que Marx rebateu-o com a obra Miséria da Filosofia 13 que marcou o fim da relação entre ambos. “O que Hegel fez pela religião, pelo direito, etc., o sr. Proudhon tenta fazer pela economia política” (p. 100), “as categorias econômicas são apenas expressões teóricas, abstrações das relações sociais de produção” e o “s. Proudhon”, diz Marx, “qual um verdadeiro filósofo, tomando as coisas pelo inverso, vê nas relações reais somente as encarnações desses princípios” (p. 101). Aqui fica mais que claro que tal enfrentamento não se deu no encontro de ambos em Paris em 1844 como o longa-metragem quis demonstrar, mas em 1847, inclusive, a crítica sobre as abstrações do francês e o caráter dúbio ou vacilante de sua definição de propriedade são retratadas fora de ordem cronológicas. Isto é, a crítica que a película representa como sendo em 1844, na realidade, foi em 1847, na Miséria da Filosofia, ademais, segundo William Z. Foster (2020), Proudhon “foi o pai do anarquismo moderno”. Contudo, “com seu famoso ditado, de que ‘propriedade é um roubo’, Proudhon referia-se à propriedade da burguesia, não da pequena burguesia. Suas ideias representavam as camadas conservadoras da pequena burguesia” (p. 78-79).

A estrutura política do mundo da década de 1840, escreveu Hobsbawm (2020) 14 , “foi grandemente transformada”, entretanto, “a monarquia ainda continuava sendo avassaladoramente o modo mais comum de governo” (p. 461). Havia extrema riqueza em um polo enquanto no outro a pobreza se disseminava como uma epidemia, “a classe trabalhadora crescia de forma vertiginosa”, mas era “uma classe desorganizada” (p. 461). Contudo, havia “a consciência de uma revolução social iminente” (p. 465), a condição dos trabalhadores urbanos “empurrava-os inevitavelmente em direção a uma revolução social”, a “revolução que eclodiu nos primeiros meses de 1848 (…) foi, no sentido literal, o insurgimento dos trabalhadores pobres das cidades” (p. 467). Ainda segundo o autor: “raras as vezes a revolução foi prevista com tamanha certeza”, “em 1847, o barulho já se fazia claro e próximo. Em 1848, explosão eclodiu” (HOBSBAWM, 2020, p. 471). Esse era o fantasma que rondava a Europa, “o fantasma do comunismo” (MARX; ENGELS, 2014, p. 105), esse era o contexto volátil no qual Marx e Engels escreveram o Manifesto do Partido Comunista e é com esse texto que o filme se encerra.

É possível, a partir da análise das obras de Marx do período de 1843-1848, perceber o rápido desenvolvimento de seu pensamento e a forma como o teórico e revolucionário leu e agiu na sociedade que o cercava. A escalada de seu pensamento estava sintonizada com o movimento geral da sociedade em direção à revolução, se em 1844, na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx (2013) escreveu “a constituição é, aqui, portanto, constituição da propriedade privada” (p. 130), no Manifesto ele e Engels (2014) concluíram: “o poder do Estado moderno é apenas uma comissão que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa” (p. 110). Nos Manuscritos de 1844, Marx (2010) escreveu: “a economia nacional conhece o trabalhador apenas como animal de trabalho, como uma besta reduzida à mais estritas necessidades” (p. 31), compreensão que permaneceu no Manifesto, “os custos do trabalhador limitam-se, portanto, quase apenas aos meios de subsistência necessários para o seu sustento e sua reprodução” (MARX; ENGELS, 2014, p. 116). Nos Manuscritos, “a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma [atividade] estranha não pertencente a ele, a atividade como miséria, a força como impotência, a procriação como castração” (MARX, 2010, p. 83), essa alienação, essa perda do caráter autônomo do trabalho dos proletários, fez ele tornar-se “um mero apêndice da máquina, do qual apenas se exige o manejo mais simples, monótono e fácil de ser aprendido” (MARX; ENGELS, 2014, p. 116). A famosa Tese Onze 15 de Marx (1982) sobre Ludwig Feuerbach (1804-1872) de 1845, que o filme mostra como uma anedota, reforçava a necessidade da práxis revolucionária implícita no Manifesto. E, na Miséria da Filosofia, as relações de produção burguesas “só produzem a riqueza burguesa” (MARX, 2017, p. 111), no Manifesto, “o que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da propriedade burguesa” (MARX; ENGELS, 2014, p. 126). Portanto, a história retratada na película é, acima de tudo, a história do salto do pensamento marxiano, do nascimento do socialismo científico e da teoria revolucionária no modo de produção capitalista. Além disso, a película retrata com maestria o processo de disputa ideológica no seio do movimento operário, que vai ser a tônica da Primeira Internacional e o início da longa trajetória de Marx para a escrita dos três livros de O Capital, na última cena.

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