150 ANOS DA COMUNA DE PARIS: ENTRE AS IDEIAS, AS BARRICADAS E O SANGUE.

Neste ano de 2021 o proletariado mundial comemora os 150 anos da Comuna de Paris, o primeiro governo de trabalhadores da história. Uma revolução sui generis mas que antecipou e solucionou paradigmas teóricos e concretos, ela se deu em um cenário de cerco militar prussiano a Paris e uma guerra civil entre duas Franças diametralmente opostas. Uma representava a porta que abria-se para o futuro: a República Social, o reino da igualdade, livre de senhores; a outra a reação, a aristocracia, a burguesia agrária e financeira.

A Comuna de Paris foi uma obra incompleta, foi mais uma promessa que uma realização, portanto é um evento que une dialeticamente o passado, o seu presente e o futuro, ela foi, ao mesmo tempo, fruto do processo histórico francês e mundial. Ela é um nó na história, um evento de 72 dias que não pode ser contornado, ela foi um farol que se projetou para o século XX, ela foi a afirmação do futuro e a negação do passado. Cabe aqui uma breve análise do processo histórico que culminou no assalto dos céus, palavras de Marx, pelo proletariado parisiense.

Por mais que a historiografia de corrente liberal insista em colocá-la como uma filha tardia das revoluções francesas de 1789 ou uma nova República Jacobina, a Comuna mais refletiu a forma que o conteúdo da revolução burguesa. É preciso ir além, como a máxima dialética que afirma que tudo que nasce traz em si o germe da sua dissolução, a Conspiração dos Iguais liderada por François Babeuf, demonstrava que no seio da sociedade burguesa havia forças que eram capazes de ir além da revolução burguesa. A Comuna de Paris não é um acidente histórico, mas sim o resultado de um processo que remete ao ano de 1848 na Europa.

A Revolução de 1848 foi a última revolução de potencial global, sacudiu a Europa e a América Latina, mais especificamente na Colômbia e no Brasil na Revolução da Praieira. Mais do que elencar fatos esparsos, o ano de 1848 na França foi marcado por duas revoluções: a de Fevereiro e a de Junho. Marx analisou em seu as Lutas de Classes na França com primazia o fato de que a Monarquia de Julho colocada no poder em 1830, numa tentativa de aburguesar o regime monárquico, era assentada sobretudo na aristocracia rural e financeira. Em fevereiro de 1848 a burguesia industrial tomou o poder para si e proclamou a República em um movimento que alçou o proletariado na linha de frente do processo revolucionário. Porém, a burguesia ao consolidar sua posição e ter seus anseios de classe saciados traiu as barricadas proletárias buscando a conciliação, inclusive, com as forças da monarquia recém derrubada. O movimento operário francês tomou os rumos da história e, em junho, com a liderança dos blanquistas, seguidores de Louis Auguste Blanqui, levaram a cabo uma revolução que foi sufocada em sangue.

O ano de 1848, ano de publicação do Manifesto do Partido Comunista por Karl Marx e Friedrich Engels, consolidou a afirmação de seu texto: a única classe verdadeiramente revolucionária é o proletariado. O historiador Eric Hobsbawm define o saldo político de 1848: foi uma revolução burguesa abortada, que marcou o esgotamento do potencial revolucionário burguês. A burguesia, a partir de então, tornou-se uma classe reacionária, e Engels profetizou o seguinte: com o sufocamento das revoluções vindas de baixo, o período seria das contrarrevoluções vindas de cima. Nas eleições de 1848 na França venceu Luís Napoleão, sobrinho do primeiro Bonaparte, um homem que em sua campanha anunciava a volta do Império. Em 1851, Luís Napoleão tornou-se Napoleão III e fundou o II Império, em um momento em que o poder escorreu da burguesia que havia fundado a República, Marx colocou de maneira clara: Napoleão III era um líder do lumpemproletariado, um representante da reação. Um homem que de 1851 até 1870 disputaria a hegemonia da Europa com seu homólogo Bismarck.

Contudo, a partir do ano de 1848 o movimento operário internacional se consolidou, principalmente com a fundação da Primeira Internacional em 1864, com papel de protagonismo de Marx. No seio da Internacional surgiram os embates entre Marx, Bakunin e os seguidores de Proudhon, mas o que é mais importante é que durante do II Império o proletariado francês cada vez mais crescia e cada vez mais se organizava. Napoleão III teve de conviver com sucessivas greves e revoltas principalmente em Paris e em Lyon, os clubes revolucionários de inspiração jacobina, blanquista, proudhoniana e os próprios internacionalistas multiplicavam-se. E, nas reuniões clandestinas, nas mobilizações operárias, as vozes confluíam para uma perspectiva: a instauração da Comuna revolucionária.

O movimento operário francês se preparou para a tomada do poder, a Comuna de Paris não surgiu como um acidente histórico, por mais que os franceses fossem jacobinos, blanquistas e proudhonianos, havia no horizonte a perspectiva revolucionária. E a janela histórica abriu quando da eclosão da Guerra Franco-Prussiana, o choque entre os dois imperialismos europeus, como fruto inexorável das ambições expansionistas de ambos. Em 1 de setembro de 1870 Napoleão III caiu na batalha de Sedan, uma República foi instaurada, a Terceira República, que caiu nas mãos de todas as forças reacionárias que instauraram um Governo de Defesa Nacional. Marx, com sua natural ironia, taxou o novo governo como Governo de Defecção Nacional, este que negociava a paz com a Prússia em termos absurdos. Os prussianos estacionaram suas tropas ao redor de Paris, a Guarda Nacional proletarizada em virtude da guerra, tomou a defesa da cidade em suas mãos. Iniciava a guerra civil.

Horácio Gonzalez, historiador da Comuna de Paris, coloca que naquele momento a França se dividia em duas e Adolphe Thiers, um orleanista e figura deprimente da história francesa, buscou de todas as maneiras desmoralizar a cidade. Mudou a capital para Versalhes e, quando por ordem da reação francesa tentou retirar os canhões de artilharia do forte de Montmartre, mas as mulheres francesas impediram a sua tomada, argumentando serem seus os canhões, contudo as tropas confraternizaram com os populares e dois generais foram fuzilados. Em 18 de março de 1871 a Comuna de Paris surgiu na história. O governo dos communards foi uma experiência federada de autogestão, para Marx, a forma finalmente encontrada pelo proletariado para a superação da ordem burguesa. Sua organização era democrática, com seus representantes sendo remunerados com o salário de um operário comum, com cargos removíveis a qualquer momento, organizaram a produção de maneira socializada, aboliram a prostituição, o trabalho noturno e a jornada de trabalho foi reduzida; instauraram a igualdade entre os sexos, o ensino laico e gratuito, democratizaram o judiciário, o acesso ao casamento, separação da Igreja e do Estado, além de adotar o calendário revolucionário e instaurar a bandeira vermelha como símbolo da República Universal. Mais do que isso, a Comuna formou a primeira confederação de mulheres presidida por uma russa e Léo Frankel, revolucionário húngaro, ficou responsável pela comissão do trabalho, um claro exemplo do internacionalismo comunalista.

A tomada pelo poder pelos trabalhadores franceses demonstrou que, para manter o status quo, a burguesia estava disposta a entregar Paris para os prussianos. A verborragia burguesa de “Deus, Pátria e Família” era arrasada pelos fatos e pelo desespero versalhês de pôr um fim à revolução social do proletariado parisiense. Nesse sentido foi negociada a soltura de uma força de mais de 50 mil soldados presos pelos prussianos para o esmagamento da experiência comunarda. Por outro lado, o governo comunalista teve escrúpulos em demasia ao, quando possuía vantagem militar, quando do abandono de Paris pelos militares e pela burocracia, não atacou suas forças, bem como não apoderou-se do Banco Nacional de França, esse que acabou sendo aparelhado por Versalhes. Também os comunardos demonstraram ingenuidade quando da formalização da paz entre Versalhes e Prússia, a despeito de Paris, imaginaram que as forças prussianas eram neutras e que cederiam as posições no entorno da cidade para os parisienses. A demora em demasia na centralização do poder, visto que por serem proudhonianos e influenciados pelo pensamento de Bakunin eram contra a ditadura do proletariado, quando dessa tentativa em poder dos setores blanquistas, as suas atitudes não passaram de afixação de cartazes chamando à luta popular. O comando militar parisiense era débil e isso custou caro, outra particularidade era que os guardas nacionais estavam radicados em seus bairros, o que tornou a centralização de comando difícil, com seus homens preferindo defender suas ruas, suas famílias e seus amigos que se mobilizar para postos estratégicos. Outro ponto era a negação da formação de um exército regular para contrapor-se às forças versalhesas, o que minou o poder de resistência vermelho em Paris. Além de seu sistema de polícia não ser efetivo na neutralização de sabotadores, espiões, dos jornais versalheses e dos padres que foram ponta de lança da contrarrevolução.

Desse modo, os versalheses entregaram a Alsácia e Lorena para os prussianos que, de quebra, unificaram a Alemanha, às custas de sufocar Paris em sangue. Episódio que ficou marcado como Semana Sangrenta inaugurou um morticínio, apesar da heróica resistência dos comunardos que por 5 dias lutaram até a morte, Versalhes fuzilou mais de 20 mil parisienses, prendeu mais dezenas de milhares de pessoas, além de condenar mais dezenas a trabalhos forçados perpétuos. Eis o ponto em que chega a contrarrevolução burguesa para manter seus privilégios de classe. A Comuna de Paris foi o assalto dos céus, como disse Marx, mas ao assaltar aos céus esqueceu-se da Terra, ao apego a idealismos, ao pudor, à superioridade moral revolucionária não empreendeu a força necessária para garantir o poder como em 1917 fez Lenin. Versalhes não poupou mulheres, quando não foram executadas, foram estupradas e presas sob as piores condições; Versalhes não poupou nem crianças e nem adolescentes, espancando e matando todos aqueles que, de algum modo, carregavam um estandarte ou vestiam a farda azul da Guarda Nacional. A reação não possui escrúpulos, pois fora alimentada pela propaganda de que os comunardos eram facínoras, bárbaros e que escravizavam o povo de Paris. A era das fake news não se restringe ao século XXI, mesmo no parlamento brasileiro de 1871 os comunardos eram tachados de “cancro do mundo moderno”, ou como no jornal brasileiro O Apóstolo da Igreja, em 1871: “A comuna de Paris e todas as suas doutrinas perversas são a mais legítima consequência dos livros de Renan, e de Proudhon e de outros, que negaram a divindade de Jesus e proclamaram um roubo o direito de propriedade”.

Por fim, é preciso dizer que a Comuna projetou-se ao futuro e, como tal, foi objeto de disputa pelas mais variadas forças. É preciso dizer, por rigor historiográfico, que Marx àquela altura era um grande dirigente, mas suas ideias não penetraram decisivamente no proletariado francês, os internacionalistas eram a minoria. Marx e a Internacional irão ganhar conhecimento mundial, de fato, após a Comuna de Paris, Proudhon que morrera em 1865, seu princípio federativo influenciou mais que as ideias marxianas, assim como Bakunin que participou de um dos levantes de Lyon. Fato é que Marx e Bakunin tiveram a mesma conclusão a respeito dos fatos de Paris: não é necessário apenas apoderar-se da máquina do Estado, é preciso destruí-la. Lenin assim definiu a Comuna de Paris: “foi um exemplo brilhante de como o proletariado sabe cumprir unanimemente as tarefas democráticas, que a burguesia só sabia proclamar”, para Trotsky “o ensaio histórico, débil ainda, de dominação da classe operária” e para Stalin ela significou “a ditadura do proletariado sobre a burguesia”. A Comuna foi decisiva para o pensamento dos bolcheviques no seio da II Internacional, de modo que o renegado Kautski colocou: “a Comuna foi obra de todo o proletariado; todas as correntes socialistas dela participaram, nenhuma foi excluída nem se omitiu”, aludindo a centralização do poder pelos bolcheviques na Rússia.

Por fim, a Comuna de Paris foi o primeiro governo de trabalhadores da história e foi o ato fundador da era das revoluções socialistas, um evento incontornável que mudou os rumos da história do proletariado mundial, ela foi a ditadura do proletariado do século XIX. E seu exemplo ecoa até os dias de hoje entre as barricadas, as ideias e o seu sangue derramado, é necessário manter sua memória viva, é preciso afirmar a necessidade histórica da superação da ordem burguesa.

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